15 de julho de 2009

Gilberto Freyre e Eu


Eu e Gilberto Freyre temos algumas coisas em comum, e não achem vocês que é o tom racista dos argumentos. Compartilhamos, sim, e principalmente, a paixão pelo Nordeste e o gosto pela boa mesa. Gostei deste artigo - que me foi enviado por um amigo que achou o blabláblá a minha cara :) - e resolvi compartilhar com meus leitores. Bem escrito e muito gostoso de ler. Foi publicado na Revista O Cruzeiro, aquela que todo bom (e mau) estudante de Comunicação já leu alguma vez na vida.

Sintam-se à vontade para contribuir com mais textos bons assim.


Mapa culinário do Brasil

Venho há anos tentando organizar um mapa culinário do Brasil em que se exprima uma geografia não da fome, mas da velha e autêntica glutoneria brasileira. Que entre nós existe glutoneria, sem deixar de haver fome. Existe a arte da boa cozinha, sem deixar de haver falta ou escassez de carne sangrenta, legume verde e até peixe fresco para serem cozinhados de gostosas maneiras tradicionais e regionais.

Um mapa culinário do Brasil, fixando as principais especializações regionais da cozinha nacional, começaria com o sarapatel de tartaruga do Amazonas a e sopa de castanha do Pará: o Pará do açaí. Mas não pararia no açaí. Não ficaria no Pará. Viria até o churrasco sangrento à moda do Rio Grande do Sul, acompanhado de mate amargo. Incluiria o "barreado" paranaense. O lombo de porco mineiro. O vatapá baiano. O cuscus paulista. O sururu alagoano. A fritada de caranguejo paraibana. O arroz de cuchá maranhense. O quibebe do rio Grande do Norte. A paçoca cearense. O pitu pernambucano.

Êsse mapa hei de publicá-lo um dia: um mapa a côres, acompanhado de guia para o turista que deseje viajar pelo Brasil sabendo que pratos característicos deve pedir em cada região principal do país cujo encanto queira surpreender pelo paladar e não apenas pelos olhos e pelos ouvidos. Será êsse guia companheiro do livro Açúcar, de cujas receitas caras e complexas, só para dias de jantar ou almoço de festa - às vezes se queixam as moças mal iniciadas na arte dos quitutes e na Ciências da Economia Doméstica. Mas não as boas quituteiras nem as sólidas donas de casa. Pois estas sabem adaptar as velhas receitas aos novos tempos.

Ainda a pouco, fiquei maravilhado com um bôlo Souza Leão saboreado no Rio de Janeiro, à sobremesa de jantar caprichado: jantar de bodas de prata. "Receita de Açúcar" - informa-me gentilmente a dona da casa que não é nenhuma milionária. Lembrei-me então que aquêle segredo ou mistério de família eu o conseguira, com muitos rogos, de distinta sinhá pernambucana que, por sua vez, o desencantara com muita diplomacia e talvez até algum feitiço - o feitiço da persuasão feminina - de velha parenta, para quem a receita ortodoxa do bôlo Souza Leão era só aquela: as outras ela considerava heresia ou "invenção".

Êsse mistério e vários outros, Açúcar revelou-os. São doces e bolos - os reunidos no livro - difíceis de fazer e alguns - concordo - arcaicos. Interessante só para o etnógrafo ou o sociólogo. Suas receitas chegam até nós do tempo que sinhás dengosas e negras escravas se orgulhavam de saber fazer doces difíceis para regalo dos homens e delícia dos meninos; e desdenhavam os doces fáceis e simples. Havia tempo, vagar e fartura para os doces difíceis. Que as donas de hoje procurem compreender o passado brasileiro refletido nas páginas daquele livro em vez de simplesmente se queixarem das receitas do livro Açúcar, considerando-as "erradas", tôda vez que não conseguem transporta-las do papel à panela, reduzindo o número de ovos e a quantidade de manteiga.

Mas isso é outro aspecto do assunto. O que me interessa no momento é tentar a organização de outro mapa culinário do Brasil, além do anunciado no comêço desta nota. Neste outro mapa culinário do Brasil, se fixariam especializações não só regionais como municipais, de mesa e sobremesa.

Querem os leitores de O CRUZEIRO, espalhados por todo êste vasto Brasil cooperar comigo na tentativa de organização de mapa assim minucioso? É só me escreverem, indicando quitutes que dêem fama aos seus municípios de origem ou residência. Procurem ser exatos e precisos. Acompanhem a indicação de receita. Assinem. O enderêço dêste cronista é: Apipucos, Recife. Pernambuco.

Fonte: FREYRE, Gilberto. Mapa culinário do Brasil. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 24 nov. 1951. Pessoas, Coisas e Animais.